Texto compartilhado pelo associado Vasco Pereira de Oliveira – morador de Sertãozinho (SP)
Corria o ano de 1985 (se é que ano tem pernas), quando a sobrinha do Serafim veio à agência receber a aposentadoria rural do seu tio. “Tio Serafim está doente, de cama, e não pode vir”, disse ela olhando para o chão. O gerente da agência conhecia o Serafim, agricultor das mãos calosas, rosto queimado pelo sol. Todo mês ele vinha à agência, chegava cedinho, no dia certo, para receber os trocados que o ajudavam a sustentar meia dúzia de filhos e alguns agregados. Era pagar parte das dívidas na venda e na farmácia e pegar alguma coisa para passar o mês. Sempre sobravam dívidas.
“E agora, como fazer?, rosnou o chefe. O gerente assumiu: “Dê o dinheiro e mande o Alfredo junto com a moça para “pegar” a assinatura do Serafim”. “Serafim não assina”, disse o Alfredo. “Pois leve a carimbeira e mande o Serafim sujar o dedo”. Alfredo, o funcionário mais novo da agência, sentiu-se prestigiado com tão importante missão a ele confiada pelo gerente. Assim foi.
O Alfredo até que puxou prosa com a sobrinha do Serafim, mas ela, tímida, acelerava a charrete batendo na égua, para apressar a viagem e sair da situação que a constrangia. Moça da roça, tinha vergonha do moço do banco. Pior: teria que trazer o Alfredo de volta à cidade.
Passaram dentro do riacho, depois comeram poeira do Volks do Araújo, que tinha o pé de chumbo. “Um dia esse desgraçado ainda atropela um animal”, deixou escapar a sobrinha, a raiva atropelando a timidez.
De longe já se avistava a cabana do Serafim. Algo estava errado, pressentiu o Alfredo, pois havia um movimento anormal de gente no quintal. Chegando mais, ouviram choro, lamentações. Quando Amelinha veio gritando “papai morreu”, Alfredo entendeu o que se passava: Serafim havia morrido, e agora? Cônscio da sua missão, tinha que levá-la a cabo, mas uma dúvida o assaltava: teria o Serafim direito ao dinheiro que já estava com a sobrinha? Caso positivo, como colher a assinatura do Serafim, se ele já estava morto? Sem telefone, longe da agência, encheu-se de dúvidas. Tinha que tomar a decisão ali mesmo, pois não podia pedir arrego ao chefe ou ao gerente.
Criou coragem, estufou o peito e entrou pela casa: colho a assinatura, de qualquer jeito. Pediu licença, o corpo estendido sobre a mesa. Passou pelos pés do Serafim, que vestia um paletó puído. Nunca tinha reparado nos pés de um defunto, pensou: “Serafim devia ter cortado as unhas”, e em seguida: “Isso não é hora de pensar nessas coisas”. Avançou até as mãos do Serafim, cruzadas sobre o peito como convinha a um defunto. Tirou a carimbeira do bolso “Ora, um homem sofrido tem direito a um último pagamento”, tentou afastar o braço do Serafim que devia ter morrido já há algum tempo. Com dificuldade, separou os dedos já um tanto enrijecidos. Pediu ajuda, alguém segurou o braço e ele, no cumprimento do dever, sujou o polegar do Serafim com a tinta azul, tirou o documento do bolso e carimbou com a “assinatura” do falecido.
Missão cumprida, era voltar para a agência. No bolso direito a carimbeira e o carnê devidamente assinado pelo Serafim; no esquerdo, pesando mais, o orgulho do dever cumprido.
Vasco Pereira de Oliveira
Sertãozinho - SP
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